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Tema em destaque: Ruas e sítios na Lisboa oitocentista. Usos e classificações em quatro roteiros da cidade
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
Na alvorada do século XIX, os viajantes que andavam nas ruas de Lisboa costumavam descrever espaços desordenados, sujos e pouco funcionais. A circulação era difícil e perigosa, sendo as ruas sobretudo percorridas pela abundante criadagem que povoava a cidade. Uma vez passado o primeiro impacto visual geral provocado pela grandeza e beleza do sítio natural, o visitante apontava sobretudo a confusão e a sordidez das ruas da capital. A vida quotidiana na cidade era geralmente vista como uma experiência incómoda e sem interesse e à noite eram os cães que tomavam conta de cada praça e esquina. Se estas descrições acabavam, por vezes, por incorporar as representações tradicionais que, desde a Idade Média, fizeram da cidade uma comunidade de habitantes que se distinguem pelos seus privilégios e materiais, faziam-no sempre de um modo impessoal, afastando-se da realidade quotidiana.
No entanto, nesta mesma época, os textos e os discursos sobre ou em torno das cidades portuguesas começam a incorporar referências que testemunham uma mudança significativa das imagens, dos valores e das funções atribuídas ao fenómeno urbano. Trata-se de um processo de longa duração que, no caso português, tem sido pouco explorado. Entre os finais do século XVIII e os meados do século XIX, a cidade começa a perder a imagem dominante de espaço simbólico e de prestígio, marcado pelas permanências, para adquirir referências novas que vão beber mais do lado do económico, do variável, da adaptação ao mundo moderno.
Segundo Bernard Lepetit, que estudou o caso francês, um novo imaginário urbano faz da cidade uma «máquina de produzir o necessário, o útil e o agradável». No caso de Lisboa, se é ainda difícil medir com precisão quais foram os feitos do contexto histórico conturbado - o terramoto, as invasões francesas, a guerra civil - a evolução não parece ter sido muito diferente.
Através destas mutações das imagens da cidade, são alterações das sensibilidades urbanas que podem ser apreendidas. Proponho uma primeira abordagem a este tema através do problema específico da descrição e da identificação do espaço urbano. Na realidade, as novas sensibilidades urbanas levaram a repensarem a questão das mobilidades e, mais geralmente, das relações que cada citadino estabelece com o espaço urbano. Deslocar-se por necessidade (para o trabalho) ou por prazer (passear) surge daí em diante como uma característica básica da condição de citadino.
Obviamente, as evoluções são muito morosas e levam tempo a chegar a todos os habitantes. As mobilidades quotidianas dentro da cidade são, aliás, um tema bastante discutido na historiografia. A questão da separação entre lugar de residência e lugar de trabalho tem sido objecto de algumas reavaliações. Alguns indícios parecem indicar que o desenvolvimento das mobilidades quotidianas não teve uma tão directa ligação com o desenvolvimento de redes de transportes públicos, que decorreu mais tarde, já nos finais do século XIX.
Entre o fim do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, surge sobretudo a ideia de que habitar uma cidade e ser citadino não significa, necessariamente ter um conhecimento aprofundado e um contacto regular com a totalidade do território urbano. De um ponto de vista prático, novos instrumentos são a pouco e pouco elaborados: guias, planos ou roteiros da cidade. Divulga-se a ideia de que, sem a ajuda de documentos cartográficos (mapas) ou de roteiros, já não é possível orientar-se numa rede de ruas, numerosas de mais para ficarem na memória individual
Neste artigo, tenho como objectivo observar e analisar o processo de redução da cidade a um conjunto de sinais abstractos, tais como listas de ruas. Escolhi como fontes os roteiros de Lisboa publicados no princípio do século XIX.
A minha hipótese é que, longe de serem apenas abstracções afastadas da «experiência quotidiana da cidade», estes documentos permitem também reconstituir alguns aspectos da evolução das percepções do espaço urbano e dos modos de habitar a cidade ou seja da maneira de se apropriar social e afectivamente destes lugares e de transformar espaços em territórios. Neste estudo, os roteiros servem então de ponto de observação da diversidade das relações que pessoas e grupos sociais estabelecem com o espaço urbano.
Consulte o artigo integral
SLG - Biblioteca Pública Regional
VIDAL, Frédéric-Ruas e sítios na Lisboa oitocentista. Usos e classificações em quatro roteiros da cidade". -«Ler História», 52, 2007, p.9-27.
Na alvorada do século XIX, os viajantes que andavam nas ruas de Lisboa costumavam descrever espaços desordenados, sujos e pouco funcionais. A circulação era difícil e perigosa, sendo as ruas sobretudo percorridas pela abundante criadagem que povoava a cidade. Uma vez passado o primeiro impacto visual geral provocado pela grandeza e beleza do sítio natural, o visitante apontava sobretudo a confusão e a sordidez das ruas da capital. A vida quotidiana na cidade era geralmente vista como uma experiência incómoda e sem interesse e à noite eram os cães que tomavam conta de cada praça e esquina. Se estas descrições acabavam, por vezes, por incorporar as representações tradicionais que, desde a Idade Média, fizeram da cidade uma comunidade de habitantes que se distinguem pelos seus privilégios e materiais, faziam-no sempre de um modo impessoal, afastando-se da realidade quotidiana.
No entanto, nesta mesma época, os textos e os discursos sobre ou em torno das cidades portuguesas começam a incorporar referências que testemunham uma mudança significativa das imagens, dos valores e das funções atribuídas ao fenómeno urbano. Trata-se de um processo de longa duração que, no caso português, tem sido pouco explorado. Entre os finais do século XVIII e os meados do século XIX, a cidade começa a perder a imagem dominante de espaço simbólico e de prestígio, marcado pelas permanências, para adquirir referências novas que vão beber mais do lado do económico, do variável, da adaptação ao mundo moderno.
Segundo Bernard Lepetit, que estudou o caso francês, um novo imaginário urbano faz da cidade uma «máquina de produzir o necessário, o útil e o agradável». No caso de Lisboa, se é ainda difícil medir com precisão quais foram os feitos do contexto histórico conturbado - o terramoto, as invasões francesas, a guerra civil - a evolução não parece ter sido muito diferente.
Através destas mutações das imagens da cidade, são alterações das sensibilidades urbanas que podem ser apreendidas. Proponho uma primeira abordagem a este tema através do problema específico da descrição e da identificação do espaço urbano. Na realidade, as novas sensibilidades urbanas levaram a repensarem a questão das mobilidades e, mais geralmente, das relações que cada citadino estabelece com o espaço urbano. Deslocar-se por necessidade (para o trabalho) ou por prazer (passear) surge daí em diante como uma característica básica da condição de citadino.
Obviamente, as evoluções são muito morosas e levam tempo a chegar a todos os habitantes. As mobilidades quotidianas dentro da cidade são, aliás, um tema bastante discutido na historiografia. A questão da separação entre lugar de residência e lugar de trabalho tem sido objecto de algumas reavaliações. Alguns indícios parecem indicar que o desenvolvimento das mobilidades quotidianas não teve uma tão directa ligação com o desenvolvimento de redes de transportes públicos, que decorreu mais tarde, já nos finais do século XIX.
Entre o fim do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, surge sobretudo a ideia de que habitar uma cidade e ser citadino não significa, necessariamente ter um conhecimento aprofundado e um contacto regular com a totalidade do território urbano. De um ponto de vista prático, novos instrumentos são a pouco e pouco elaborados: guias, planos ou roteiros da cidade. Divulga-se a ideia de que, sem a ajuda de documentos cartográficos (mapas) ou de roteiros, já não é possível orientar-se numa rede de ruas, numerosas de mais para ficarem na memória individual
Neste artigo, tenho como objectivo observar e analisar o processo de redução da cidade a um conjunto de sinais abstractos, tais como listas de ruas. Escolhi como fontes os roteiros de Lisboa publicados no princípio do século XIX.
A minha hipótese é que, longe de serem apenas abstracções afastadas da «experiência quotidiana da cidade», estes documentos permitem também reconstituir alguns aspectos da evolução das percepções do espaço urbano e dos modos de habitar a cidade ou seja da maneira de se apropriar social e afectivamente destes lugares e de transformar espaços em territórios. Neste estudo, os roteiros servem então de ponto de observação da diversidade das relações que pessoas e grupos sociais estabelecem com o espaço urbano.
Consulte o artigo integral
SLG - Biblioteca Pública Regional
VIDAL, Frédéric-Ruas e sítios na Lisboa oitocentista. Usos e classificações em quatro roteiros da cidade". -«Ler História», 52, 2007, p.9-27.
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